No táxi leva sempre CD para vender aos clientes e às vezes até canta ao
volante. À noite estaciona e percorre as casas de fados. Até já entrou
com o táxi num estúdio de TV
“Desculpe, é o senhor, aí na capa do CD?” A pergunta é feita ao taxista, até então de poucas palavras, a caminho do Lux, em Lisboa. Vítor Manuel olha pelo retrovisor com um ar desconfiado e responde, meio indiferente: “Sou eu, sim.” No banco de trás há uma explosão de alegria: “O senhor é fadista? Queremos ouvi-lo! Ponha o CD a tocar! Cante!” Vítor demora a responder e volta a olhar pelo espelho. Ainda tenta formular uma desculpa qualquer de não poder desembrulhar o CD que está em cima do rádio do carro – “só se comprarem” –, mas depois desiste de tentar vendê-lo. “Bem, vocês são boa gente, vou pôr a tocar.”
O resto da viagem é feita ao som das primeiras faixas de “Este é o meu fado”, o terceiro álbum de Vítor Manuel, de 63 anos, também conhecido como o taxista fadista. A primeira música, diz-nos, e que dá nome ao álbum, é sobre a sua vida de “fadista, taxista e emigrante”. De facto, com uma vida tão preenchida, não lhe falta inspiração para letras e para uma tarde de conversa numa esplanada. “Falo muito”, diz-nos, como se ainda não tivéssemos reparado.
Voltamos a encontrá-lo num café da Praça da Figueira, em Lisboa, sugestão dele, um dos sítios onde costuma parar. O seu carro não passa despercebido no meio dos outros da praça de táxis, com a frase “O táxi do fado” e uma guitarra portuguesa. “É o único em Lisboa que tem publicidade a uma casa de fados, o Caldo Verde, no Bairro Alto. É uma grande responsabilidade, por isso temos de comportar-nos como verdadeiros cavalheiros na cidade.” É por isso que só trabalha com o filho, de 23 anos, que faz o turno da manhã. “Bom rapazito, ele. Muito sério, um miúdo simpático, pontual, estou muito contente por trabalhar com ele.” Vítor costuma pegar no serviço às 16h00. “Faço à volta de 12, 14 horas no táxi. E é nesse tempo que canto.”
Se o imagina a cantar a plenos pulmões dentro do táxi, engana-se. Quer dizer, às vezes acontece. “Há pessoas que me pedem para cantar porque não acreditam que sou mesmo eu no CD.” Mas regra geral, às 20h30, Vítor costuma estacionar o táxi e ruma às casas de fado lisboetas para cantar e vender CD.
À terça-feira está sempre no restaurante Vocemessê, “uma casa muito bonita junto à Sé onde cantamos fado do tipo vadio, alegre, e no fim até damos oportunidade aos turistas de fazerem uma desgarrada connosco”, conta. À quarta--feira canta no Caldo Verde, no Bairro Alto, a casa que publicita no táxi. “É uma casa mais séria, mais profissionalizada. À quarta canto até às duas da manhã, mas vou lá todos os dias para vender CD.”
A prioridade, diz Vítor, é o táxi, por isso o ideal é demorar o mínimo tempo possível em casas de fado. “Só canto onde sei que vou vender CD”, diz. “Há casas de fado vadio que se aproveitam dos indivíduos que gostam de cantar para lhes fazer a casa e não lhes dão nada em troca. Eu, pelo menos, sou frontal.” Se vê que não tem de esperar muito tempo até à sua vez de cantar, Vítor fica. “Faço a festa, canto, mando foguetes, vendo CD [a 15 euros nalgumas casas, a 10 euros noutras e dentro do táxi] e vou-me embora.”
A alcunha de taxista fadista já lhe deu reputação pela cidade, de tal forma que é comum ser convidado para programas de TV. “Uma vez fui ao programa do Goucha e até entrei com o táxi no estúdio. Fui lá fazer o lançamento do meu último disco.”
Antes de gravar álbuns e de conduzir táxis, Vítor teve uma vida preenchida. Aos 16 anos saiu da sua terra natal, perto de Abrantes, para trabalhar na Marinha. Esteve em África e, quando voltou, foi músico “em vários conjuntos”. “Comecei a tocar trompete aos 11 anos na filarmónica”, explica. Chegou mesmo a tocar saxofone e trompete em cruzeiros no paquete “Funchal”. “Depois emigrei para a Suíça e estive lá dez anos. Foi lá que abri uma casa de fados”, conta. Regressou à sua terra – de que prefere não dizer o nome – e abriu um café. Também foi presidente do motoclube e da união filarmónica, mas não se adaptou bem “à província”. “Vendi tudo o que tinha e voltei para Lisboa em 2000. Trabalhei com gruas até que um indivíduo me disse: ‘Porque é que não compras um táxi?’ Eu já tinha licença para conduzir e foi o que fiz.”
A todas estas profissões Vítor quase podia juntar mais uma: a de psicólogo. “Às vezes aparecem-me aí pessoas a dizer: ‘Leve-me para qualquer sítio, quero-me matar.’ Lembro-me de um indiano assim e convenci-o a não fazer isso.” Também há outra história com “uma mulher que dizia ter perdido tudo no jogo”. “Menti--lhe e disse-lhe que isso também me tinha acontecido e depois me tinha metido na religião, mas tinha conseguido safar-me”, ri-se.
Os episódios são mais que muitos. No outro dia apanhou um casal a fazer sexo no banco de trás. “Eu nem sou muito de olhar para trás, mas quando reparei estavam mesmo nus. Já nem tinham noção de onde estavam”, conta. “Com os travestis do Conde de Redondo lembro-me também que punham o rabo de fora da janela para se meterem com as pessoas. Tinha de puxá-los para dentro.”
Fonte : Clara Silva, publicado em 22 Set 2012 no " ionline "
“Desculpe, é o senhor, aí na capa do CD?” A pergunta é feita ao taxista, até então de poucas palavras, a caminho do Lux, em Lisboa. Vítor Manuel olha pelo retrovisor com um ar desconfiado e responde, meio indiferente: “Sou eu, sim.” No banco de trás há uma explosão de alegria: “O senhor é fadista? Queremos ouvi-lo! Ponha o CD a tocar! Cante!” Vítor demora a responder e volta a olhar pelo espelho. Ainda tenta formular uma desculpa qualquer de não poder desembrulhar o CD que está em cima do rádio do carro – “só se comprarem” –, mas depois desiste de tentar vendê-lo. “Bem, vocês são boa gente, vou pôr a tocar.”
O resto da viagem é feita ao som das primeiras faixas de “Este é o meu fado”, o terceiro álbum de Vítor Manuel, de 63 anos, também conhecido como o taxista fadista. A primeira música, diz-nos, e que dá nome ao álbum, é sobre a sua vida de “fadista, taxista e emigrante”. De facto, com uma vida tão preenchida, não lhe falta inspiração para letras e para uma tarde de conversa numa esplanada. “Falo muito”, diz-nos, como se ainda não tivéssemos reparado.
Voltamos a encontrá-lo num café da Praça da Figueira, em Lisboa, sugestão dele, um dos sítios onde costuma parar. O seu carro não passa despercebido no meio dos outros da praça de táxis, com a frase “O táxi do fado” e uma guitarra portuguesa. “É o único em Lisboa que tem publicidade a uma casa de fados, o Caldo Verde, no Bairro Alto. É uma grande responsabilidade, por isso temos de comportar-nos como verdadeiros cavalheiros na cidade.” É por isso que só trabalha com o filho, de 23 anos, que faz o turno da manhã. “Bom rapazito, ele. Muito sério, um miúdo simpático, pontual, estou muito contente por trabalhar com ele.” Vítor costuma pegar no serviço às 16h00. “Faço à volta de 12, 14 horas no táxi. E é nesse tempo que canto.”
Se o imagina a cantar a plenos pulmões dentro do táxi, engana-se. Quer dizer, às vezes acontece. “Há pessoas que me pedem para cantar porque não acreditam que sou mesmo eu no CD.” Mas regra geral, às 20h30, Vítor costuma estacionar o táxi e ruma às casas de fado lisboetas para cantar e vender CD.
À terça-feira está sempre no restaurante Vocemessê, “uma casa muito bonita junto à Sé onde cantamos fado do tipo vadio, alegre, e no fim até damos oportunidade aos turistas de fazerem uma desgarrada connosco”, conta. À quarta--feira canta no Caldo Verde, no Bairro Alto, a casa que publicita no táxi. “É uma casa mais séria, mais profissionalizada. À quarta canto até às duas da manhã, mas vou lá todos os dias para vender CD.”
A prioridade, diz Vítor, é o táxi, por isso o ideal é demorar o mínimo tempo possível em casas de fado. “Só canto onde sei que vou vender CD”, diz. “Há casas de fado vadio que se aproveitam dos indivíduos que gostam de cantar para lhes fazer a casa e não lhes dão nada em troca. Eu, pelo menos, sou frontal.” Se vê que não tem de esperar muito tempo até à sua vez de cantar, Vítor fica. “Faço a festa, canto, mando foguetes, vendo CD [a 15 euros nalgumas casas, a 10 euros noutras e dentro do táxi] e vou-me embora.”
A alcunha de taxista fadista já lhe deu reputação pela cidade, de tal forma que é comum ser convidado para programas de TV. “Uma vez fui ao programa do Goucha e até entrei com o táxi no estúdio. Fui lá fazer o lançamento do meu último disco.”
Antes de gravar álbuns e de conduzir táxis, Vítor teve uma vida preenchida. Aos 16 anos saiu da sua terra natal, perto de Abrantes, para trabalhar na Marinha. Esteve em África e, quando voltou, foi músico “em vários conjuntos”. “Comecei a tocar trompete aos 11 anos na filarmónica”, explica. Chegou mesmo a tocar saxofone e trompete em cruzeiros no paquete “Funchal”. “Depois emigrei para a Suíça e estive lá dez anos. Foi lá que abri uma casa de fados”, conta. Regressou à sua terra – de que prefere não dizer o nome – e abriu um café. Também foi presidente do motoclube e da união filarmónica, mas não se adaptou bem “à província”. “Vendi tudo o que tinha e voltei para Lisboa em 2000. Trabalhei com gruas até que um indivíduo me disse: ‘Porque é que não compras um táxi?’ Eu já tinha licença para conduzir e foi o que fiz.”
A todas estas profissões Vítor quase podia juntar mais uma: a de psicólogo. “Às vezes aparecem-me aí pessoas a dizer: ‘Leve-me para qualquer sítio, quero-me matar.’ Lembro-me de um indiano assim e convenci-o a não fazer isso.” Também há outra história com “uma mulher que dizia ter perdido tudo no jogo”. “Menti--lhe e disse-lhe que isso também me tinha acontecido e depois me tinha metido na religião, mas tinha conseguido safar-me”, ri-se.
Os episódios são mais que muitos. No outro dia apanhou um casal a fazer sexo no banco de trás. “Eu nem sou muito de olhar para trás, mas quando reparei estavam mesmo nus. Já nem tinham noção de onde estavam”, conta. “Com os travestis do Conde de Redondo lembro-me também que punham o rabo de fora da janela para se meterem com as pessoas. Tinha de puxá-los para dentro.”
Fonte : Clara Silva, publicado em 22 Set 2012 no " ionline "
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